quinta-feira, dezembro 07, 2006

Consoada...


Olá A.,

como estás?
Minha amiga, peço desculpas antecipadas pelo teor da carta mas sinto-me sufocar pelo negro, pelas memórias que me enchem cérebro e ocupam noites inteiras. Volta na volta sinto que a alma me abandona o corpo, alheio-me da realidade e é como se estivesse a visionar o filme da minha própria vida. Tudo passa tão nítido, todas as imagens, todas as palavras... todos os olhares, todos os sinais...
Faz no Natal um ano que tudo aconteceu... Lembro-me como se tudo se tivesse passado há horas. Ele estava triste. Mandou-me uma mensagem no dia 23 a dizer que se sentia só e abandonado, que sentia a minha falta e que lamentava não poder passar o Natal comigo pois o filho estava doente. Liguei-lhe de imediato. A sua voz saía como que a passo, vagarosa e muito baixa. Falámos da chuva que caía lá fora, cantando tristemente entre janelas e beirais. Descrevemo-la: o seu som, o seu toque. Abrimos as portadas e saímos para a varanda. Levantei a cabeça, olhei o céu, fechei os olhos, abri os braços e deixei a água molhar-me o rosto, beijar-me os olhos, tocar-me os lábios e lamber-me o pescoço até morrer na curvatura dos meus seios. Imaginei que eram os seus lábios... Ele fez o mesmo (ou assim o descrevia ao telefone)... será que o fez? Despedimo-nos pois ainda tinha compras de Natal para fazer. Já tinha tudo planeado desde que ele me disse que o filho estava doente. Comprei o bacalhau, as rabanadas, os coscorões e os sonhos. No saco já tinha o bolo rei e o arroz doce. No outro dia fiz a mala e preparei o bacalhau com natas. Quando lá chegasse era só aquecer. Fiz-me à estrada. Passada meia dúzia de horas estava a chegar à sua porta. Nem de propósito, o vizinho do 3.º Dto estava também a chegar. Olhou para mim de modo estranho... Estava tão excitada com a surpresa que lhe ia fazer que nem liguei. Pedi-lhe ajuda para levar a mala e alguns sacos. Educadamente, como sempre, agarrou nas minhas coisas. Mas não tirava os olhos de mim. Não era um olhar de desejo (e bem sabes como ele sempre me cortejou). Não conseguia perceber porque me fitava daquele modo... Teria o menino piorado? Preocupada com essa ideia perguntei-lhe pelo Lipinho. Olhou para mim surpreendido, pensou um pouco e depois disse-me que achava que estava bem. Talvez ainda não o tivesse visto, pensei. Chegámos à porta do apartamento e tirei as minhas chaves. O Paulo pousou a sua mão na minha antes que pudesse enfiar a chave na fechadura. Olhou-me nos olhos e perguntou-me se o Rui sabia que eu ia passar o Natal com ele. Em voz baixa disse-lhe que era uma surpresa, uma espécie de primeira prenda de Natal; afinal, íamo-nos casar dali a um mês e não queria passar o Natal longe do meu noivo, ainda para mais estando o filho dele doente. O Paulo baixou os olhos e largou-me a mão. Talvez também ele se sentisse só, já que morava sozinho e não tinha família próxima. Pensei em convidá-lo para se juntar à nossa consoada mas pareceu-me correcto falar primeiro com o Rui. Abri a porta. Baixinho tocava um jazz. Sorri e tentei não fazer barulho. Não via ninguém. Descalcei os sapatos e espreitei à porta do quarto do Lipinho. Ninguém. Deve estar na cama do pai... Segui até ao fundo do corredor. Abri a porta. Na cama estava o Rui com outra mulher. Ela estava montada em cima dele, arqueada. Ele segurava-lhe as nádegas. Estava com aquela cara de gozo, com que fica quando atinge o orgasmo, de olhos e boca aberta, cabeça inclinada para trás. Na altura nem deram por mim ali, à porta do quarto, paralisada, fitando-os... Ela inclinou-se para ele, cobrindo-lhe a cara com os seus longos cabelos louros. Fugi. Fugi quanto pude. Agarrei nos sapatos e bati a porta. Só nessa altura ouvi as suas vozes. O Paulo estava à porta. Parecia estar à minha espera mas passei por ele sem parar. Desci as escadas a correr, ainda descalça. Calcei-me quando cheguei à rua. Entrei no carro e saí dali o mais depressa que pude. Não via nada. Não sabia para onde ia. Só queria desaparecer dali. E é tudo quanto me lembro. Quando dei por mim estava a acordar numa cama de hospital... e o resto... bem, o resto tu já sabes...

2 Comments:

Blogger Lúcio Ferro said...

Bem minha cara amiga, este é um tipo de experiência que felizmente nunca me sucedeu e espero nunca venha a suceder. (Nem interpretando o papel da narradora nem o dele ou o da outra).

Espero igualmente que também não te tenha acontecido a ti... Mas lá que está realista, lá isso é inegável, nhedasse!!!

Beijo e BFSPT

12:46 PM  
Blogger Soul, Heart, Mind said...

ena... se achaste que estava realista... estou muito satisfeita!!!!!
não,não me aconteceu a mim... não assim.

bom fds tb p ti.
beijos

2:57 PM  

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